os dicionários de meu pai
Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o
dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do
dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te
servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no
acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas que eu o folheava à toa. Palavra puxa palavra e escarafunchar
o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo (desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria). O
resultado é que o livro, herdado já em estado precário, começou a se esfarelar nos meus dedos. Encostei-o na estante das relíquias
ao descobrir, num sebo atrás da Sala Cecilia Meireles, o mesmo dicionário em encadernação de percalina. Com esse livro escrevi
novas canções e romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas. E ao vê-lo dar sinais de fadiga, saí de sebo em sebo
pelo Rio de Janeiro para me garantir um dicionário analógico de reserva. Encontrei dois, mas não me dei por satisfeito, fiquei
viciado no negócio. Dei de vasculhar livrarias pais afora, sô em São Paulo adquiri meia dúzia de exemplares, e ainda rematei o
último à venda na Amazon.com antes que algum aventureiro o fizesse. Eu já imaginava deter o monopólio (açambarcamento,
exclusividade, hegemonia, senhorio, império) de dicionários analógicos da lingua portuguesa, não fosse pelo senhor João Ubaldo
Ribeiro, que ao que me consta também tem um, quiçá carcomido pelas traças (brocas, carunchos, busanos, cupins, térmitas,
cáries, lagartas-rosadas, gafanhotos, bichos-carpinteiros). Hoje sou surpreendido pelo anúncio dessa nova edição do dicionário
analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sinto como se invadissem minha propriedade, revirassem meus baús,
espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se para mim de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável,
dilacerante, miseranda) notícia. (Adaptado de Francisco Buarque de Hollanda. em Francisco F. dos S. Azevedo. Dicionário Analógico da Lingua
Portuguesa: ideias afins/thesaurus. 2º edição atualizada e revista, Rio de Janeiro: Lexikon. 2010.)
a) A partir do texto de Chico Buarque que introduz o dicionário analógico recentemente reeditado, proponha uma
definição para esse tipo de dicionário.
b) Mostre a partir de que pistas do texto sua definição foi elaborada.