O trabalho não era penoso: colar rótulos, meter
vidros em caixas, etiquetá-las, selá-las, envolvê-las em
papel celofane, branco, verde, azul, conforme o produto,
separa-las em dúzias... Era fastidioso. Para passar mais
rapidamente as oito horas havia o remédio: conversar.
Era proibido, mas quem ia atrás de proibições? O patrão
vinha? Vinha o encarregado do serviço? Calavam o
bico, aplicavam-se ao trabalho. Mal viravam as costas,
voltavam a taramelar. As mãos não paravam, as línguas
não paravam. Nessas conversas intermináveis, de
linguagem solta e assuntos crus, Leniza se completou.
Isabela, Afonsina, Idália, Jurete, Deolinda — foram mestras.
O mundo acabou de se desvendar. Leniza perdeu o tom
ingênuo que ainda podia ter. Ganhou um jogar de corpo
que convida, um quebrar de olhos que promete tudo, à
toa, gratuitamente. Modificou-se o timbre de sua voz.
Ficou mais quente. A própria inteligência se transformou.
Tornou-se mais aguda, mais trepidante.
REBELO, M. A estrela sobe. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
O romance, de 1939, traz à cena tipos e situações que
espelham o Rio de Janeiro daquela década. No fragmento,
o narrador delineia esse contexto centrado no
O julgamento da mulher fora do espaço doméstico.
relato sobre as condições de trabalho no Estado Novo.
destaque a grupos populares na condição de
©
O
protagonistas.
@® processo de inclusão do palavrão nos hábitos de
linguagem.
O
vínculo entre as transformações urbanas e os papéis
femininos.