Cabeludinho
Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me
apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar
no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu.
Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu.
Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino
está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de
regências verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo
riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de
uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que
buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor.
E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da
pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho.
Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo
trouxe um pertume die noesia à nassa quadra. Aprendi
nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar
com elas. Comecei a nãv gostar de palavra engavetada.
Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar
mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que
elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com
saudade: Ai morena, não me escreve / que eu não sei a
ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava
a solidão do vaqueiro.
BARROS, M Memórias inventadas. a infância. São Poui: Planeta, 2003,
o autor desenvolve uma reflexão sobre diferentes
lades de uso da língua e sobre os sentidos que
esses usos podem produzir, a exemplo das expressões
“voltou de ateu”, “disilimina esse” e “eu não sei a ler”. Com
essa reflexão, o autor destaca
OQ os desvios linguísticos cometidos pelos personagens
do texto.
a importância de certos fenômenos gramaticais para
o conhecimento da língua portuguesa.
a distinção clara entre a norma culta e as outras
variedades linguísticas.
o relato fiel de episódios vividos por Cabeludinho
durante as suas férias.
a valorização da dimensão lúdica e poética presente
nos usos coloquiais da linguagem.
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